COBERTURA FORA DO ROL DA ANS: AVANÇO CIVILIZATÓRIO COM FREIOS NECESSÁRIOS — E UM ALERTA CONTRA A BUROCRACIA QUE ADOECE

A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em 18 de setembro de 2025 inaugura um novo regime jurídico para os pedidos de custeio de tratamentos não previstos no rol da ANS. A Corte reconheceu ser constitucional obrigar as operadoras a cobrir procedimentos fora do rol — desde que observados critérios técnicos e processuais rigorosos. É um passo à frente em direção à racionalidade e à segurança jurídica, mas que também expõe fricções práticas e riscos de morosidade em casos tempo-sensíveis.
Como premissa, o STF afirmou a tese de que a imposição legal de cobertura excepcional é válida, contanto que os parâmetros técnico-jurídicos definidos no julgamento sejam efetivamente cumpridos. A regra geral continua a ser a centralidade do rol; a exceção — agora claramente balizada — abre-se quando o caso concreto comprova, de modo qualificado, que há ciência, segurança e necessidade clínica a justificá-la.
O Tribunal fixou cinco requisitos cumulativos para que um tratamento fora do rol seja coberto: (1) prescrição por profissional habilitado; (2) ausência de negativa expressa da ANS e inexistência de PAR pendente; (3) inexistência, para aquele caso, de alternativa terapêutica adequada já contemplada no rol; (4) comprovação de eficácia e segurança com evidência científica de alto nível ou avaliação por ATS; e (5) registro na Anvisa. Sem todos eles, simultaneamente, não há espaço para impor a cobertura.
A Corte também criou amarras processuais obrigatórias ao Judiciário. Antes de decidir, o juiz deve: (i) verificar pedido administrativo prévio e negativa (ou atraso/omissão) da operadora; (ii) analisar o ato administrativo da ANS que não incorporou a tecnologia, sem invadir seu mérito técnico; (iii) obter consulta técnica — preferencialmente por meio do NATJUS — para checar os cinco critérios, pois a prescrição sozinha não basta; e (iv) comunicar a ANS quando houver concessão, para que a agência avalie eventual inclusão no rol. A falta dessas cautelas sujeita a decisão à nulidade.
Por que isso é um avanço
A decisão prestigia a medicina baseada em evidências. Ao exigir prova robusta de eficácia e segurança, ela desestimula aventuras terapêuticas e favorece a alocação racional de recursos na saúde suplementar, onde cada cobertura tem impacto sistêmico na mutualidade. Não se trata de fechar a porta ao novo; trata-se de abrir a porta certa, com chave científica.
Também é um alívio para pacientes em situações “órfãs”, sem alternativa adequada no rol. Nesses casos, a via excepcional dá previsibilidade: existe um caminho — exigente, sim — para acessar tecnologias necessárias, desde que haja comprovação idônea e registro sanitário. O Judiciário deixa de decidir “no vazio” e passa a operar um filtro técnico claro.
Há, ainda, um acerto institucional: o STF preserva a autoridade técnica da ANS sem blindá-la de escrutínio, criando um diálogo regulatório. Ao determinar a comunicação à agência quando houver decisões favoráveis, fomenta-se aprendizado institucional contínuo sobre tecnologias que, de fato, merecem ser avaliadas para inclusão.
Onde mora o risco
O desenho é virtuoso, mas a prática pode doer. A soma de requisitos cumulativos e exigências processuais tende a elevar o tempo e o custo probatório — um problema especialmente grave em oncologia e doenças raras, nas quais semanas significam prognósticos distintos. Se núcleos técnicos (como o NATJUS) estiverem sobrecarregados, haverá morosidade e assimetria entre regiões, com decisões desiguais para casos semelhantes.
Outro ponto sensível é o requisito da “alternativa adequada”. O que é adequado para um paciente pode não ser para outro, diante de comorbidades, respostas prévias e perfis de toxicidade. O STF forneceu o arcabouço, mas as fronteiras clínicas continuarão a exigir maturidade pericial e sobriedade judicial para evitar uma litigiosidade que só aumenta despesas sem melhorar o desfecho do paciente.
Por fim, a decisão registrou divergências parciais quanto ao grau de deferência à regulação da ANS. Embora a constitucionalidade da via excepcional tenha prevalecido, parte do colegiado enfatizou aplicar o §13 em conformidade estrita com as normas técnicas da agência (art. 10, §1º, da Lei 9.656/1998). O recado é claro: excepcionalidade não é atalho para substituir o processo regulatório, e sim um escape controlado para casos bem demonstrados.
O que muda — e o que precisamos fazer
Para os pacientes e seus médicos, a mensagem é: a via existe, mas exige dossiês clínico-científicos sólidos, com indicação precisa, literatura de alto nível e prova de registro na Anvisa, além do protocolo administrativo prévio bem documentado. Para as operadoras, o recado é simétrico: negativas genéricas não sobrevivem; será preciso fundamentação técnica real e cumprimento de prazos razoáveis, sob pena de ver caracterizada a omissão. Para o Judiciário, impõe-se o papel de árbitro procedimental, escorado em pareceres técnicos e em decisões motivadas que enfrentem — de verdade — os critérios fixados.
Conclusão
O STF colocou trinco e olho mágico na porta da cobertura fora do rol. O sistema sai do terreno pantanoso da improvisação e ganha um mapa: quando ciência, necessidade clínica, registro sanitário e rito processual convergem, a exceção é legítima. O desafio, daqui para a frente, é fazer o mapa virar caminho: fortalecer os núcleos técnicos, qualificar a prova, padronizar fluxos e impedir que a burocracia — sob o pretexto de segurança — acabe por negar acesso a quem mais precisa. Se conseguirmos esse equilíbrio, teremos dado um passo raro: conciliar dignidade do paciente, sustentabilidade do setor e respeito às instituições.
Escrito por: Yury Fabiani Bezerra, OAB/MT 31.995-O