Da Natureza Jurídica do Cartão de Crédito Consignado: Contrato Híbrido e Seus Efeitos Legais
Resumo do artigo
O cartão de crédito consignado tem se consolidado como uma das modalidades de crédito mais controversas do sistema financeiro brasileiro. Comercializado, em grande parte, como se fosse um empréstimo consignado tradicional, esse produto apresenta uma estrutura jurídica complexa, que o torna fonte constante de confusões, fraudes e litígios judiciais.
A falta de clareza nas informações fornecidas aos consumidores e a forma como o produto é ofertado pelas instituições financeiras geram um cenário de violação à boa-fé objetiva, ao dever de informação e ao equilíbrio contratual, ferindo amplamente os princípios basilares do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Este artigo busca analisar, sob um enfoque jurídico doutrinário, a natureza jurídica híbrida do cartão de crédito consignado, suas implicações contratuais e os efeitos legais decorrentes da desinformação e da descaracterização da vontade do consumidor.
A Natureza Jurídica Híbrida Do Cartão De Crédito Consignado
O cartão de crédito consignado é um contrato híbrido, resultado da fusão entre dois institutos distintos: o empréstimo consignado (mútuo) e o cartão de crédito rotativo.
Sob o aspecto prático, o consumidor acredita estar contratando um empréstimo pessoal consignado, com parcelas fixas e prazo determinado para quitação. Contudo, juridicamente, o produto funciona como crédito rotativo, em que o valor descontado mensalmente na folha de pagamento corresponde apenas ao pagamento mínimo da fatura.
O saldo remanescente é automaticamente financiado pela própria instituição, gerando encargos e juros rotativos, normalmente superiores aos aplicados em um empréstimo consignado convencional.
Essa estrutura contratual complexa cria uma aparência enganosa de mútuo, quando, na realidade, trata-se de um instrumento de crédito contínuo, sem prazo certo de extinção. Tal disfarce contratual compromete a transparência da relação e induz o consumidor a erro substancial quanto à natureza da obrigação assumida.
A principal consequência dessa natureza híbrida é a possibilidade de vício de consentimento, nos termos do Art. 138 do Código Civil, quando o consumidor manifesta vontade com base em informações equivocadas sobre o tipo de contrato.
CAPÍTULO IV – Dos Defeitos do Negócio Jurídico
Seção I – Do Erro ou Ignorância
Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio.
A jurisprudência pátria tem reconhecido que, quando o consumidor acredita estar contratando um mútuo simples, mas na realidade adere a um contrato de cartão consignado, há erro essencial que invalida o negócio jurídico, ensejando sua anulação ou até o reconhecimento da inexistência contratual.
Além disso, essa forma de contratação afeta diretamente o equilíbrio econômico do contrato, uma vez que transfere ao consumidor o ônus de um crédito de difícil controle cuja dívida se renova mensalmente e garante ao banco a cobrança automática e contínua por meio de desconto em folha.
Tal cenário afronta os princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e do equilíbrio nas relações de consumo, previstos nos Arts. 421 e 422 do Código Civil e nos Arts. 4º, I e III e 6º, III do CDC.
TÍTULO V – Dos Contratos em Geral
CAPÍTULO I – Disposições Gerais
Seção I – Preliminares
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
CAPÍTULO II – Da Política Nacional de Relações de Consumo
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:(Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
CAPÍTULO III – Dos Direitos Básicos do Consumidor
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (Redação dada pela Lei nº 12.741, de 2012) Vigência
A Resolução nº 3.919/2010 e a Resolução nº 4.197/2013, ambas do Banco Central do Brasil, impõem às instituições financeiras o dever de fornecer informações claras, adequadas e completas sobre as condições de crédito, incluindo encargos, prazos, taxas e forma de amortização.
A oferta do cartão consignado como se fosse um empréstimo pessoal constitui violação direta a tais normas, além de infringir o Art. 6º, III, do CDC, que garante ao consumidor o direito à informação adequada e transparente.
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (Redação dada pela Lei nº 12.741, de 2012) Vigência
Quando a instituição financeira omite ou distorce a natureza do produto, resta configurada uma prática abusiva, conforme o Art. 39, IV, do CDC, que veda o aproveitamento da fraqueza ou ignorância do consumidor para impingir-lhe produto diverso do pretendido.
SEÇÃO IV – Das Práticas Abusivas
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)
IV – prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;
Dessa forma, a conduta bancária que leva o consumidor a acreditar estar contratando um empréstimo, quando na verdade celebra um contrato de cartão de crédito, viola os deveres anexos da boa-fé, especialmente os de cooperação, lealdade e informação, sendo juridicamente passível de responsabilização civil e anulação contratual.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já firmou entendimento no sentido de que a ausência de informações claras e adequadas acerca do produto financeiro contratado configura prática abusiva, violando o dever de informação previsto no Código de Defesa do Consumidor e ensejando o dever de indenizar.
Conforme assentado no Recurso Especial nº 1.639.259/RS, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, a Segunda Seção do STJ decidiu que:
“A ausência de informações claras e adequadas sobre o produto financeiro contratado constitui prática abusiva e enseja o dever de indenizar.”
(STJ – REsp 1.639.259/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 28/11/2018, DJe 17/12/2018).
Em casos de confusão entre empréstimo consignado e cartão de crédito consignado, o Tribunal também tem reconhecido que o vício de consentimento e a falta de clareza informacional configuram violação à boa-fé objetiva, ensejando a devolução dos valores descontados e a reparação por danos morais.
Esses precedentes demonstram a necessidade de releitura da prática bancária sob a ótica do princípio da transparência, a fim de garantir que o consumidor compreenda plenamente os riscos e características do produto financeiro ofertado.
Por fim, cabe dizer que o cartão de crédito consignado é um produto financeiro legítimo, mas sua execução e prática tem revelado desvios e dissimulações contratuais que ferem a boa-fé e a confiança do consumidor.
Sua natureza jurídica híbrida exige tratamento regulatório e judicial diferenciado, que leve em conta a vulnerabilidade informacional do contratante e o dever de diligência das instituições financeiras.
A correta identificação e delimitação jurídica dessa modalidade contratual são essenciais para evitar fraudes, abusos e litígios, garantindo, assim, a efetividade dos princípios do CDC e a função social do contrato.
Mais do que um problema contratual, trata-se de uma questão de ética negocial e proteção à dignidade do consumidor, pilares fundamentais de um mercado de crédito saudável e transparente.
Formado em Direito no ano de 2014 pela Faculdade Cândido Rondon (UNIRONDON). É membro efetivo do Escritório de Advocacia Galvão e Palomares Advogados Associados, com mais de 11 anos de experiência profissional, é membro e Secretário Geral da Comissão Nacional de Direito Bancário da ABA, com ampla atuação em lidar com instituições financeiras e defender os direitos dos consumidores, com foco em cobranças indevidas de empréstimos consignados na modalidade cartão de crédito. É membro e Secretário Adjunto da Comissão Nacional de Direito do Consumidor da ABA. Professor de Curso Técnico da Instituição de Ensino UNEC (Unidade de Educação de Cuiabá) desde 2023, com ênfase na área jurídica, atuando em cursos técnicos de Segurança do Trabalho, Psicologia do Trabalho e Direito Imobiliário. É especialista em Direito Individual, Coletivo e Processual do Trabalho desde 2019, pela AMATRA 23 (Associação de Magistrados da Justiça do Trabalho da 23ª Região). Especialista em Direito e Prática Previdenciária Atualizado na Pós-Reforma desde 2022, pela Faculdade CERS e Especialista em Gestão na Advocacia desde 2024, pela instituição de ensino IPOG.
Escrito Por Dr. Ubirajara Galvão de Oliveira
Sendo assim, vamos comentar:
A abordagem apresentada no artigo demonstra notável clareza expositiva e um rigor técnico raramente encontrado em análises sobre o cartão de crédito consignado, tema que costuma ser tratado de forma superficial em grande parte da literatura jurídica. Logo nas primeiras linhas, o autor evidencia domínio do assunto ao identificar, com precisão conceitual, a natureza híbrida dessa modalidade de crédito — ponto central cuja incompreensão tem alimentado inúmeras demandas judiciais e distorções contratuais. A forma como ele decompõe essa estrutura, revelando a coexistência entre a aparência de mútuo consignado e o funcionamento real de um crédito rotativo permanente, confere ao texto uma capacidade didática essencial para o debate público e acadêmico.
Outro elemento que se destaca é a articulação equilibrada entre doutrina, legislação e jurisprudência, construída de maneira fluida, sem excessos terminológicos ou formalismos desnecessários. O autor não se limita a citar dispositivos legais: ele contextualiza, interpreta e demonstra suas repercussões práticas, sobretudo no tocante ao dever de informação e à boa-fé objetiva. Sua exposição sobre o erro substancial, por exemplo, é desenvolvida com clareza conceitual e com a preocupação de mostrar como esse vício se materializa no cotidiano dos consumidores — muitos dos quais sequer compreendem que contrataram um produto que não possui prazo certo de extinção. Essa capacidade de traduzir teoria em realidade é uma das virtudes intelectuais mais marcantes do texto.
Além disso, há uma contundência serena na crítica dirigida às instituições financeiras. O autor não apela para retórica inflamada; ao contrário, constrói sua argumentação de forma lógica e progressiva, permitindo que o próprio leitor conclua, ao final, pela existência de práticas abusivas resultantes da assimetria informacional entre bancos e consumidores. A inclusão de precedentes do STJ, como o REsp 1.639.259/RS, fortalece o argumento e demonstra maturidade metodológica, pois não se trata de mera exemplificação, mas da consolidação jurisprudencial que legitima a tese defendida.
A redação também chama atenção pelo equilíbrio entre profundidade técnica e acessibilidade. Embora o tema seja complexo, o autor consegue torná-lo compreensível sem comprometer a densidade jurídica. A escolha vocabular é precisa, e a progressão temática — iniciando pela estrutura contratual, avançando para os vícios de consentimento, passando pelas violações do CDC e concluindo com as repercussões éticas e sociais — confere ao artigo uma fluidez natural, que prende o leitor e facilita a assimilação.
Por fim, o artigo se encerra de maneira exemplar ao lembrar que discutir cartão de crédito consignado é discutir ética negocial, vulnerabilidade e função social dos contratos. O autor não restringe sua análise ao plano normativo, mas evidencia que a questão transcende a técnica jurídica, alcançando o campo da dignidade do consumidor e da responsabilidade institucional. Trata-se, portanto, de um texto sólido, bem estruturado, fiel às fontes e de leitura imprescindível para quem deseja compreender, com precisão, o verdadeiro alcance jurídico dessa modalidade contratual.
Comentado por Dr. Yury Fabiani Bezerra



